Atuação da primeira mulher a presidir a Academia Cearense de Letras é reconhecida
Uma menina que nasceu numa casa biblioteca. Assim se autodefine a professora e escritora Angela Gutiérrez. E quis o destino que décadas depois de ter vivido sua infância entre livros da biblioteca de seu bisavô, Tomás Pompeu, em Fortaleza, se tornasse a primeira mulher a presidir a Academia Cearense de Letras. “Nascendo numa casa biblioteca seria estranho se não amasse livro”, avalia Angela, autora de clássicos como “O Mundo de Flora (1990)”, “Avis Rara (2001) e “Luzes de Paris e o Fogo de Canudos (2006)”.
Quando ainda sequer sabia ler, Angela Gutiérrez fantasiava querendo saber que segredos havia dentro dos livros. O pai, Luciano Cavalcante Mota, foi o seu guia nas bibliotecas que frequentou durante a infância e juventude. A mãe, Angela Laís Pompeu Rossas Mota, sempre foi uma contadora de histórias, referência qualificada por Gutiérrez como a guardiã da memória da família. “Eu via in loco, sabia que ali sentava meu bisavô, que minha avó estava lá sentada, contando as histórias do avô dela, o Senador Pompeu. Então desde pequena eu estava dentro da história da literatura, ouvindo coisas que se tinham passado dentro daquela casa. Acho que eu já tinha um caminho marcado pelo lugar onde nasci”.
Somente 124 anos após ser criada a Academia Cearense de Letras uma mulher sentou na cadeira da presidência. Para Angela Gutiérrez, estar atualmente à frente da entidade literária mostra mudança de costumes e de cultura, fruto de perseverança de grandes mulheres como ela. “Alba Valdez foi a primeira acadêmica da Academia Cearense de Letras. Ela foi convidada e, poucos anos depois, o nome dela foi retirado em uma nova mudança. Ela se levantou, escreveu um artigo de pé e disse que a afronta não tinha sido só a ela, mas a todas as mulheres escritoras e a todas as brasileiras”, relatou Angela. “Mas nem assim algo mudou. Somente depois de alguns anos ela foi reconduzida. Depois disso, entraram outras duas da família de Juvenal Galeno. Levou muito tempo até que as mulheres retornassem à categoria e ainda hoje nós somos minorias. Os tempos mudam e a mulher vai cada dia assumindo papéis que eram só masculinos e, de repente acontece isso, elegem uma mulher presidente da Academia”.
Primeira Academia de Letras do Brasil
Em sua essência, a Academia Cearense de Letras tem uma característica forte. Ela foi primeira do gênero. A Academia Brasileira de Letras surgiu somente em 1897, enquanto que a cearense já existia desde 1894. “O cearense é sempre pioneiro e a nossa Academia visa construir culturas, especialmente a cultura literária e difundi-la”. Hoje, segundo sua presidente, novos rumos estão sendo tomados, como a inclusão de pessoas que não têm o costume de frequentar atividades literárias. “Estamos convidando muitas escolas para virem aqui, jovens de universidades para que sintam que isso aqui não é uma torre de marfim. A Academia Cearense de Letras não é uma torre de marfim, nós ocupamos há 30 anos. Em novembro vamos comemorar, pois a Academia Cearense de Letras antes vivia passeando, ficava num lugar, ia para outro, até que passou a ter como sede o Palácio da Luz. Considero que a Academia começou uma nova fase quando se instalou no Palácio da Luz”, analisa Angela Gutiérrez.
Para ela, presidir a Academia Cearense de Letras é uma honra, mas também representa muito trabalho, posto que são dois setores dos quais precisa cuidar. Um é o patrimônio. “Cuidar de uma casa que é Sede de Governo desde o século XVIII já é pesado. Como uma casa antiga, precisa constantemente ser recuperada”. Por outro lado, Angela precisa cuidar da Academia. “Tenho que cuidar das atividades voltadas para a sociedade e cuidar das atividades da Academia com os sócios. São dois grandes setores que precisam estar equilibrados”.
Desenvolver o gosto pela literatura diante do atual cenário onde são tantas as opções acessíveis a partir do chamado boom tecnológico é algo que constantemente leva Angela Gutiérrez à reflexão. Para a escritora não podemos eliminar a internet da nossa vida, ela tem seus valores. O que se pode ser feito é o melhor uso da internet. “A gente precisa é educar nossos filhos e netos a ter limite no uso do computador, do celular e tudo aquilo que acessa a internet. Temos que dar um limite, assim como sempre foi dado para a televisão. Sempre dissemos que primeiro era preciso fazer a tarefa de casa”, aconselha. “Em criança o livro era a minha paixão, eu podia ler embaixo das árvores. As crianças não tinham tanta ocupação como têm hoje. Balé, natação, cursos de línguas são maravilhas, mas isso precisa ser bem dosado para que a criança possa ter o tempo de ficar só, de ler, de inventar brincadeiras, precisa ter o seu momento de pensar. Todo mundo tem o direito de ficar sozinho com a sua imaginação”, argumenta a escritora que nos raros momentos livres adora ficar com seus oito netos.
Cultura é resistência
Angela Gutiérrez é daquelas pessoas que não deixam de expressar o que sentem e tampouco se negam a buscar o melhor, não para si, mas para a cultura brasileira. Para ela, no cenário atual, quem trabalha com cultura em qualquer lugar do Brasil, são heróis e heroínas. “É o momento em que o Ministério da Cultura já foi, não existe mais. O que temos é uma Secretaria de Cultura. É triste falar isso, mas o atual Governo Federal tem menosprezado a Cultura”, avalia. “Felizmente isso não acontece aqui no Ceará, onde o Governo do Estado, assim como acontece com os outros governos no Nordeste, temos quase uma Confederação do Equador, têm buscado, mesmo com tanta dificuldade, honrar a nossa cultura, tanto que tivemos uma belíssima Bienal Internacional do Livro, há pouco tempo, comandada pelo extraordinário secretário de Cultura Fabiano Piúba”, ressalta a professora.
A presidente da Academia Cearense de Letras será uma das seis personalidades que receberão no próximo dia 29 de novembro, a Medalha da Abolição, comenda instituída em 1963, que reconhece o trabalho relevante de brasileiros para o Estado do Ceará e para o Brasil. Gutiérrez diz ter recebido com surpresa a informação que lhe foi repassada pelo próprio governador Camilo Santana. “O governador telefonou e pensei que seria chamada para algum curso, conferência, ou algo assim. Quando soube do que realmente se tratava eu fiquei honrada”, conta. “Mas não recebi como se fosse para mim, recebi como eu sendo a representante dos escritores, professores, e, muito especialmente, das professoras, das escritoras. Hoje em dia tem se dado foco maior sobre as mulheres porque passaram muito tempo nas sombras e agora precisam aparecer, precisa que elas tenham voz, tenham palavra”, afirma ela que em seus diversos cargos ocupados em órgãos como a Universidade Federal do Ceará foi responsável por conquistas como a implantação do programa de pós-graduação da UFC, que fez 30 anos recentemente, implantou o ICA (Instituto de Cultura e Arte da UFC), sendo encarregada pela reforma e modernização da Casa de José de Alencar, que estava com teto caindo.
Tendo convivido toda a sua vida com livros nas mãos e lado a lado com a cultura e arte, a Medalha da Abolição coroa a trajetória de Angela Gutiérrez. “Aqui em nosso Estado se investe nessas áreas. Acho triste dar as costas para a arte num país em que a arte é viva, vibrante, seja na dança, com trabalhos em pintura, trabalhos de tradições populares. Aqui em nosso Estado foi criada uma Bolsa e um título para os Mestres da Cultura. O Ceará tem disso sim! É uma terra de pessoas pioneiras, então temos que valorizar nosso traço cultural e nossa Secretaria de Cultura tem valorizado”, comemora a homenageada com a Medalha da Abolição.
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