Ainda bem que de vez em quando tropeçamos na genialidade de Ariano Suassuna. Ele morreu em 2014, aos 87 anos, mas é daqueles raros criadores artísticos que merecem a imortalidade. Seu maior sucesso, a peça Auto da Compadecida, e suas aulas shows constituem só a ponta de um iceberg fundamental para a arte e a cultura brasileiras. Ao cunhar a expressão “armorial” como símbolo de um movimento de afirmação da cultura nordestina, intrinsecamente mestiça, nos anos 1970, Suassuna redescobriu um mundo fabuloso, o do Brasil profundo.
Ele mesmo conta: “Foi aí que, meio sério, meio brincando, comecei a dizer que tal poema ou tal estandarte de Cavalhada era ‘armorial’, isto é, brilhava em esmaltes puros, festivos, nítidos, metálicos e coloridos, como uma bandeira, um brasão, ou um toque de clarim. Lembrei-me, aí, também, das pedras armoriais dos portões e frontadas do Barroco brasileiro, e passei a estender o nome à escultura com a qual sonhava para o Nordeste. Descobri que o nome ‘armorial’ servia, ainda, para qualificar os ‘cantares’ do Romanceiro, os toques de violas e rabecas dos cantadores - toques ásperos, arcaicos, acerados como gumes de faca de ponta, lembrando o clavicórdio e a viola de arco da nossa música barroca do século 18”.
Em outra ocasião, mostrou as diferenças entre Villa-Lobos e Guerra-Peixe: “Na música de Villa-Lobos, há uma preocupação brasileira e popular; mas o Brasil é um mundo e o popular é um mundo. Já a música de Guerra-Peixe é com os temas sertanejos, principalmente”.
De um lado, o Movimento Armorial nasceu umbilicalmente fincado na cultura nordestina do sertão, mas com pretensões eruditas. Suassuna instigou o violinista Cussy de Almeida e outros músicos a essa aventura.
Dois álbuns recentes comungam essa gramática artística do Brasil visceral. Um deles bebe claramente no movimento armorial; o outro mostra que Suassuna abriu espaço para as manifestações mais atávicas e até então recalcadas do Brasil que estou chamando de profundo. Porém, mesmo não sendo expressamente ligado ao movimento armorial, é evidente a afinidade estética, estilística, sonora.
É impressionante como o disco Carta de Amor e Outras Histórias faz avançar as matrizes armoriais de Suassuna. Une a violinista paulistana Ana de Oliveira e o violonista pernambucano Sérgio Ferraz. Ela, formada pela UFRJ e na Escola Superior de Música de Freiburg, na Alemanha. Ele, formado pela UFPE e com sólida vivência no mundo da música popular, ligado ao Armorial via Antonio Madureira, expoente do movimento.
O resultado é arrebatador, e classificado pelo compositor Ricardo Tacuchian, no texto do encarte, como cordel contemporâneo: “O sonho de Suassuna foi criar uma arte erudita a partir dessas raízes populares nordestinas”. Unem-se, assim, o sangue do Agreste de Sérgio com a formação germânica de Ana (expressões de Tacuchian). Ouça primeiro a obra central do álbum, a Suíte Armorial, de Sérgio, em quatro movimentos: Mestre Salu, Lamento, Zumbi e Festa na Aldeia. Nos dois últimos, Marcos Suzano toca pandeiro e moringa. Virtuosismo de primeira, sensibilidades atávicas à flor da pele. A combinação violino e violão 8 cordas oferece um inesperado mundo de timbres por causa da inclusão inteligente de técnicas estendidas, normalmente usadas na música contemporânea. Duas interpretações magistrais de dois clássicos de Egberto Gismonti (Frevo e Lôro) emolduram essa aventura diferenciada.
Sertão profundo. Estradar é a gravação mais surpreendente que se poderia realizar hoje de obras do habitante mais emblemático do sertão profundo nordestino, Elomar Figueira de Mello, nascido em 1937 em fazenda da zona da mata baiana, em Vitória da Conquista.
O formato é o do “lied”, gênero alemão por excelência praticado por Schubert, Schumann, Brahms e Richard Strauss: canto e piano. Brilhou por um século, entre o primeiro e o último dos citados. E de repente revive aqui, quando dois artistas bem brasileiros compartilham o objetivo certeiro de Suassuna com o Armorial. Versos a um só tempo simples e extremamente sofisticados, do dialeto que Elomar chama de “sertanezo” (sic). Treze canções em que a voz precisa e ao mesmo tempo calorosa da cearense Verlúcia Nogueira integra-se ao piano refinadíssimo de Tiago Fusco. As canções de Elomar são estróficas - como são os lieder germânicos, na maior parte. E como o piano comenta, pontua e dialoga com a voz.
Que escolha ousada e maravilhosa. São 13 canções que nos impactam tanto quanto a leitura da saga de Diadorim e Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Várias delas retiradas de dois autos de Elomar: Auto do Tropeiro Gonsalim e Auto da Catingueira.
Um glossário explica alguns termos do vocabulário especial de Elomar. Em História de Vaqueiros, por exemplo: Frechêro é bode novo; Levantado marruêro é touro ermitão; Lubião é lobisomem; Ranca toco é perito; e Turuna é muito bom, competente. Uma obra-prima, pela criação de Elomar; e pela reinvenção dessas canções sem que perdessem seu sabor muito peculiar. Num como noutro álbum, virtuosamente, realiza-se a fusão imaginada por Ariano Suassuna entre as fontes populares nordestinas e a chamada grande música.
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